crítica
O tempo de duas guerras
Três veteranos da guerra do Vietname reencontram-se para o funeral do filho de um deles, falecido em combate no Iraque — "Derradeira Viagem" liga as componentes de duas épocas, reafirmando a energia dramática e a sofisticação narrativa do grande cinema de Hollywood.
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joao lopes
8 Dez 2017 19:37
Lembram-se de "Boyhood" (2014), o filme de Richard Linklater que contava a história de 12 anos da vida de uma personagem — da infância ao fim da adolescência —, tendo sido rodado ao longo de… 12 anos? Linklater é, de facto, um autor fascinado pelas marcas incontornáveis do tempo que passa. O seu novo e admirável filme, "Derradeira Viagem" (título original: "Last Flag Flying"), aí está a confirmar a singularidade da sua visão.
Desta vez, trata-se de um tempo de guerra, ou melhor, de um tempo que se define através do cruzamento humano, e também da contaminação simbólica, de duas guerras travadas pelos EUA: Vietname e Iraque. Tudo se desencadeia em finais de 2003, a partir do momento em que Larry Shepherd (Steve Carell), veterano do Vietname, procura Sal Nealon (Bryan Cranston) e Richard Mueller (Laurence Fishburne), dois companheiros de armas que não vê há décadas — acontece que o filho de Larry morreu em combate no Iraque e é preciso cumprir os rituais fúnebres.
O envolvimento emocional do filme passa, antes de tudo o mais, pela especificidade da situação. Através de um argumento de impecável depuração dramática (escrito pelo próprio Linklater em colaboração com Darryl Ponicsan, autor do romance em que o filme se baseia), acompanhamos uma verdadeira experiência "on the road" em que todos se confrontam com o sentido e, por vezes, o sem sentido dos laços humanos.
"Derradeira Viagem" é, afinal, um herdeiro directo dos grandes filmes de Hollywood em que as convulsões colectivas se exprimem através dos destinos individuais — para nos ficarmos por um exemplo emblemático, lembremos "Os Melhores Anos das Nossas Vidas" [trailer], produção de 1946 através da qual William Wyler fez um balanço familiar/nacional da Segunda Guerra Mundial (vencedor de sete Oscars, incluindo melhor filme do ano).
Será que existe um público capaz de superar a visão maniqueísta de Hollywood como uma fábrica de efeitos especiais para filmes de super-heróis, ao mesmo tempo reconhecendo (e admirando) em objectos como "Derradeira Viagem" as componentes mais genuínas da produção made in USA? Uma coisa é certa: estamos perante um dos filmes mais delicados e complexos de 2017 e não será surpresa se alguns dos seus criadores surgirem entre os nomeados para alguns prémios da temporada que vai até aos Oscars — Steve Carell, por exemplo, uma vez mais provando que a noção de "cómico" é insuficiente para definir o seu imenso talento.