joao lopes
27 Ago 2020 1:18
O novo filme de Christopher Nolan, "Tenet", conquistou um lugar na história da maneira mais ingrata. Os sucessivos adiamentos da sua estreia (nos EUA e em todo o mundo) colaram-lhe o rótulo de "filme-que-pode-motivar-o-regresso-dos-espectadores-às-salas", assombrando-o com o chamado veredicto das bilheteiras…
Corremos, assim, o risco de nos enredarmos na ideologia dominante do marketing, alheando-nos da declaração simbólica que, de facto, o filme transporta. A saber: o que está em jogo excede a simples aritmética das receitas das salas (ainda que não a ignore). Trata-se de celebrar o cinema como acontecimento específico das salas, não substituível por qualquer alternativa de "streaming" (por mais sofisticada, prática e útil que possa ser).
Estamos, portanto, perante um objecto, sem dúvida gerado por um aparato técnico de impressionante complexidade (graças a um orçamento de 200 milhões de dólares, dizem os cálculos mais prudentes), mas ao mesmo tempo conduzido pelo prazer primitivo do cinema — entenda-se: imagens e sons.
Claro que não nos podemos alhear de toda a vertigem — thriller & ficção científica — que alimenta a história do Protagonista (John David Washington). E que ele se auto-intitule "Protagonista", eis o toque de humor que vale a pena acolher, como se nos recordasse apenas a mais rudimentar evidência cinematográfica: "Eu sou uma personagem". A história de "Tenet" — título que é um sedutor palíndromo — apresenta-se, assim, como a aventura de uma existência que se expõe como "coisa" que existe para lá da linearidade do tempo.
Impossível descrevê-lo de forma racional. Porque este é também um filme sobre os limites de qualquer racionalismo. Ao serviço da CIA, aquilo que faz o Protagonista e o seu companheiro Neil (Robert Pattinson) corresponde a uma espécie de reinvenção das medidas do próprio tempo. Isto porque "Tenet" não é tanto uma convencional viagem no tempo, antes a entrada num universo (narrativo) em que a reversibilidade daquelas medidas faz com que, na mesma imagem, possam coexistir uma determinada acção futura e a acção passada que a primeira veio "revisitar" e, de alguma maneira, "corrigir".
Onde estamos, então? Num mundo de magia, ilusão e ilusionismo que nada tem a ver com a agitação visual e a agressão sonora de algumas aventuras contemporâneas (observe-se a monótona rotina das produções Marvel). Vogamos nas paisagens nostálgicas da ancestral herança de Georges Méliès (1861-1938). Para Nolan, o cinema, artifício do tempo — afinal, cada filme é sempre um acontecimento do presente —, existe como celebração colectiva das nossas crenças e descrenças. Que é como quem diz: como acontecimento de uma sala escura, com um som envolvente (sendo escusado sublinhar que "Tenet" foi, antes de tudo o mais, pensado e fabricado para as salas IMAX).
De tudo isso resulta a sedutora duplicidade da arquitectura narrativa de "Tenet", obviamente fazendo lembrar outros momentos exemplares da obra de Nolan — não os filmes de Batman, mas as suas outras viagens no tempo, a começar, claro, pelo emblemático "Memento" (2000).
Por um lado, somos projectados num labirinto filosófico em que todas as tradicionais coordenadas humanas vacilam — será preciso lembrar que este é um filme-sintoma deste nosso tempo em que a proliferação dos dispositivos virtuais nos leva, conscientemente ou não, a redifinir as fronteiras clássicas daquilo a que chamamos realidade?
Por outro lado, "Tenet" percorre as estradas desse labirinto com a agilidade e o humor de quem visa, em última instância, a preservação do cinema como arte colectiva dos nossos medos e utopias, desejos e fantasmas.
Nolan é o primeiro a saber que o seu labor não é o de um pioneiro, mas sim o de um arqueólogo movido pela vontade e, mais do que isso, a urgência de preservar o cinema como acontecimento singular e insubstituível. Afinal de contas, nem ele nem o seu estúdio produtor (Warner Bros.) cederam à tentação de enfrentar a situação de pandemia comocando "Tenet" nos circuitos virtuais — desde o primeiro momento, ficou claro que era fundamental não abdicar de lançar o filme através da experiência prioritária das salas.
Ironia final: em momento de despedida, o diálogo entre Neil e o Protagonista brinca mesmo com a memória lendária do diálogo final de "Casablanca" (1942). E há qualquer coisa de singelo e tocante nesse eco das palavras trocadas por Humphrey Bogart e Claude Rains, celebrando "o princípio de uma bela amizade" — Nolan é um cinéfilo, eis a questão.