joao lopes
22 Ago 2015 18:14
Será quase banal dizê-lo, mas é infelizmente verdade: não poucas vezes, a avaliação social do género cómico leva a desvalorizar a dimensão eminentemente crítica que as suas narrativas podem conter. Ou então, no pólo oposto, o rótulo de "comédia" serve para ocultar a mediocridade intrínseca de muitas formas de intervenção (como acontece, com frequência, no domínio da "stand up comedy").
Se mais não houvesse, tal bastaria para que o ciclo dedicado a Jacques Tati (1907-1982) constituísse um dos acontecimentos fundamentais do nosso Verão cinematográfico — aqui está, de facto, um criador de génio que, como poucos, soube explorar os espaços, comportamentos e valores da sociedade de consumo — "Playtime" (1967), entre nós com o subtítulo "Vida Moderna", é a obra-prima absoluta dessa visão.
Tal como outros cineastas da mesma época (veja-se ou reveja-se o prodigioso "Duas ou Três Coisas sobre Ela", rodado por Jean-Luc Godard também em 1967), Tati observa as transformações do tecido urbano de Paris, em particular as novas construções em torno Aeroporto de Orly. Deambulando em cenários de comportamentos cada vez mais normalizados e repetitivos, através da sua personagem de Mr. Hulot, Tati dá-nos conta do humor absurdo que contamina todas as relações humanas.
Se "O Meu Tio" (1958) tinha sido o filme de confronto entre uma França tradicional (o bairro de eleição de Hulot) e os novos valores consumistas (o aglomerado de casas assépticas onde vive o sobrinho de Hulot), "Playtime" é a crónica risonha de um tempo em que sociedade se converte a uma crescente formatação de relações, em grande parte induzida pelas novas tecnologias.
Tati não olha com desprezo para essas tecnologias — contempla-as mesmo com contagiante sentido de humor; em todo o caso, o seu filme perguntava (e pergunta-nos) para onde foi a dimensão humana. Este não é, por isso, um reencontro nostálgico com "Playtime": é mesmo a redescoberta de um objecto que continua a conjugar-se no presente.