joao lopes
7 Nov 2020 22:00
Atravessamos um tempo de muitas crises narrativas… De tal modo que a aposta na recuperação dos clássicos (cinematográficos ou literários) vai marcando as mais diversas áreas de produção. Face ao "Pinóquio" agora proposto pelo italiano Matteo Garrone — trata-se, de facto, de uma produção de 2019 distinguida com cinco prémios David di Donatello —, o menos que se pode dizer é que se assume como um projecto original, alheio a qualquer imitação de anteriores adaptações do clássico de Carlo Collodi.
Não estamos perante uma longa-metragem de animação, como a hiper-clássica animação de Walt Disney com data de 1940. E não se repete a dimensão feérica da versão que, também no interior da produção italiana, Roberto Benigni protagonizou e dirigiu em 2002 — com a particularidade curiosa de Benigni reaparecer como intérprete, mas agora na personagem de Gepetto, o mestre carpinteiro que cria o bonequinho de madeira que vai ganhar vida própria.
Garrone, vale a pena recordá-lo, é também autor de alguns dos dramas mais intensos gerados pelo cinema italiano nas últimas décadas, incluindo esse retrato íntimo da Mafia napolitana que é "Gomorra" (2008), ou ainda "Dogman" (2018), um amargo conto moral dos subúrbios. Dir-se-ia que o realismo cru de alguns dos seus trabalhos passa para "Pinóquio" através de um cuidado labor de cenografia — o seu Pinóquio pertence a uma Itália rural, empobrecida e, ao mesmo tempo, aberta à esperança da fantasia e do fantástico.
A concepção da figura de Pinóquio é especialmente feliz, combinando a fisicalidade do actor (Federico Ielapi) com um delicado trabalho de próteses, de tal modo que a "pele" de madeira (também das outras marionetas que pontuam uma cena fundamental) coexiste com a espontaneidade e alegria dos seus movimentos. Em resumo: a revisitação dos clássicos é uma possibilidade sempre em aberto, recriando-os para novas gerações de espectadores.