Irène Jacob em


joao lopes
3 Dez 2015 20:04

Quase a terminar um ano, importa dizer que, para além dos desequilíbrios ou inconsistências que possamos apontar ao mercado cinematográfico português, as reposições (re)conquistaram um lugar estável no seu funcionamento. Dito de outro modo: os mais diversos distribuidores têm sabido valorizar uma relação dinâmica com as memórias cinéfilas, mostrando "velhos" clássicos, além do mais através de magníficas cópias restauradas.

Agora, é a vez do cineasta polaco Krzysztof Kieslowski (1941-1996), por certo um dos nomes fulcrais da produção europeia da segunda metade do século XX. Assim, podemos ver ou rever os seus quatro títulos finais, espelhando três componentes essenciais da sua visão do mundo:

1 — uma permanente interrogação dos limites da experiência material dos seres humanos, vislumbrando a hipótese de uma transcendência que nos aproxima (ou afasta) do espaço divino — convém recordar que Kieslowski é autor da notável série televisiva "Decálogo"(1989-1990), tendo como ponto de partida os Dez Mandamentos;

2 — uma discussão formal (e, em boa verdade, sensual) das fronteiras figurativas do cinema, por assim dizer dividido entre as suas componentes realistas, derivadas da sua evidência "fotográfica", e a possibilidade de nos fazer sentir, ou pressentir, o que está para além do experiência visível do quotidiano;
3 — uma atenção obsessiva e carinhosa às convulsões do feminino, de tal modo que as mulheres dos seus filmes (e, de alguma maneira, as respectivas actrizes) vivem experiências que desafiam todas as componentes do seu ser, ao mesmo tempo que interrogam as certezas do universo dos homens.

* A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (1991) — Até que ponto a vida paralela de Weronica, uma cantora lírica polaca, e Véronique, uma professora de música francesa, corresponde ao cumprimento de um destino comum, selado pelo mistério do sagrado? Entregando ambas personagens a Irène Jacob, intérprete de radiosa verdade, Kieslowski coloca em cena um enigma enraizado no próprio (des)conhecimento do factor humano — é um filme tão transparente, e também tão enigmático, quanto o pode ser uma cerimónia ritualizada.

* AZUL (1993) — Começava aqui a célebre "Trilogia das Cores", associando as cores da bandeira francesa aos temas simbólicos da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Para a personagem de Julie (outra notável composição: Juliette Binoche), a perda do marido e do filho implica um trabalho de luto misteriosamente pontuado pela música incompleta deixada pelo marido — uma fábula realista, enfim, em que a energia da vida se diz através da proximidade da morte. 



* BRANCO (1994) — Na sequência da sua conflituosa separação de Dominique (Julie Delpy), Karol Karol (Zbigniew Zamachowski) descobre-se envolvido num processo de reconstrução da sua própria personalidade que, em última instância, questiona todas as certezas que pudesse ter sobre as relações humanas — na sua dimensão dramática, é também um filme em que, através de uma calculada ambiguidade, Kieslowski integra alguns elementos irónicos, por vezes à beira do burlesco.

* VERMELHO (1994) — Irène Jacob regressa para interpretar Valentine, uma estudante, modelo nas horas vagas, que estabelece uma inesperada relação de cumplicidade com Joseph Kern (Jean-Louis Trintignant), um juiz retirado. As atribulações a que são sujeitos (re)colocam a possibilidade de uma proximidade fraternal, de algum modo esquecida num mundo em que a proliferação das imagens tende a ser mais forte que os próprios factores humanos. No seu misto de desencanto e esperança, ficou como um testamento do cineasta, falecido a 13 de Março de 1996, durante uma operação de coração aberto, na sequência de um ataque cardíaco — cerca de dois anos antes, depois da conclusão de "Vermelho", Kieslowski anunciara que se retirava do cinema.

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