joao lopes
19 Fev 2021 0:26
Um dos fenómenos mais interessantes, porventura também mais desconcertantes, da oferta online é a abundância de propostas documentais. Ainda bem, sem dúvida. Mas é um facto que tal abundância decorre de um fenómeno relativamente recente, e tanto mais quanto uma parte significativa dos títulos envolvidos reflecte uma espécie de "revolta" contra as memórias estandardizadas — será que nos contaram a história verdadeira daquilo que aconteceu? Como se fosse necessário reagir à sobrecarga de informações em que vivemos, procurando alguma consistência naquilo que se mostra e diz…
"The Two Killings of Sam Cooke" [Netflix] é um significativo exemplo de tal postura. Trata-se de revisitar a vida daquele que foi o "pai da moderna música soul" — consagrado como "Rei da Soul" —, epíteto tanto mais lendário quanto breve sobre a sua existência: Cooke foi assassinado no dia 11 de dezembro de 1964, contava 33 anos.
O conjunto de documentos reunidos para a realização de Kelly Duane é fascinante. Mais, muito mais, do que qualquer exploração dos elementos eventualmente pitorescos, procura-se dar a ver os muitos contrastes de uma trajectória de afirmação da música da América negra, indissociável, no caso de Cooke, de uma elaborada estratégia industrial e comercial.
Daí, aliás, os "dois assassinatos" a que se refere o título (a propósito, não seria altura de, embora utilizando a referência dos originais, traduzir os títulos para português?…). Sam Cooke foi, afinal, alguém que se tornou um alvo a abater porque, nesses primeiros anos da década de 60, a sua visão implicava a defesa dos direitos sociais dos afro-americanos, ao mesmo tempo que apostava numa reconversão crítica de todos os modos de produção e difusão da música. Dito de outro modo: este sugestivo retrato é também uma metódica crónica social e política sobre momentos emblemáticos da história dos EUA na segunda metade do século XX.