Beatriz Batarda no filme de Margarida Cardoso: revisitando memórias do tempo colonial


joao lopes
27 Fev 2015 22:29

Mantemos uma relação ambígua com o passado colonial português: por um lado, sabemos que a sua memória está, algures, no labirinto da história, dos seus factos e imaginações; por outro lado, sentimos, mesmo se não o sabemos explicar, que tal memória existe em défice, como se tivéssemos medo ou pudor de dela nos aproximarmos.

Sustentado por um elenco de invulgar equilíbrio e subtileza, o novo e magnífico filme de Margarida Cardoso, "Yvone Kane", nasce dessa ambiguidade, projectando-nos num país africano, abstracto, mas em tudo e por tudo marcado pela história colonial portuguesa (até porque é um país onde se fala português). Não é uma evocação de factos precisos, antes uma teia de acontecimentos em que, a certa altura, o que realmente acontece tem tanto de palpável como de indecifrável.
Há uma sugestão de enigma policial: Rita (Beatriz Batarda) é uma mulher que se empenha em descobrir o que se passou com Yvone Kane, militante muito activa do processo de independência daquele país; ao empreender a sua viagem, vai encontrar-se com a sua própria mãe, Sara (Irene Ravache), que ali ficou, vivendo um processo de apagamento emocional que ora parece voluntário, ora inexorável.
Em última instância, "Yvone Kane" expõe o modo como Rita e Sara, face à herança enigmática de Yvone, se confrontam com a resistência da própria memória — como se, ao mergulharem no passado, corressem o risco de perder as razões da sua identidade. O filme de Margarida Cardoso é sobre isso mesmo: a vontade de apropriação de uma herança histórica e, ao mesmo tempo, a consciência desencantada de que há coisas que já não voltam e que, num certo sentido, se perderam para sempre. Em resumo: uma galeria de solidões encenada como um exercício metódico de revelação.

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