Isabelle Huppert sob a direcção de Paul Verhoeven — uma perturbante teia moral


joao lopes
16 Nov 2016 23:57

Quais as actrizes mais universais do cinema contemporâneo? Podemos fazer uma lista (não muito longa…) que será, quase inevitavelmente, liderada pela americana Meryl Streep. Seja como for, nos lugares de honra encontraremos, por certo, o nome da francesa Isabelle Huppert. Aliás, para além da questão fulcral do talento, vale a pena sublinhar que Huppert está a ser seriamente encarada como alguém que estará na corrida a uma nomeação para o próximo Oscar de melhor actriz.

O "culpado" de tudo isso é o magnífico filme do holandês Paul Verhoeven, "Elle" — e saudemos o facto de, entre nós, se ter evitado um título mais ou menos "simbólico", chamando-lhe apenas, sobriamente, "Ela".
Que se passa, então? Ela é violada. É a cena de abertura do filme, fria, contudente, sem especulação. E escusado será dizer que tudo se vai gerar a partir daí — quem é aquele homem que irrompeu pela casa de Michèle (Huppert), agredindo-a e humilhando-a?
O que faz de "Ela" um filme realmente diferente é o facto de Verhoeven transfigurar os dados da situação, evitando qualquer vitimização fácil da protagonista e, ao mesmo tempo, devolvendo ao espectador, em formato de conto moral, o novelo da questão — quando Michèle arquitecta a sua vingança, de que modo vacilam as matrizes tradicionais do masculino e do feminino?
Dir-se-ia que Verhoeven regressa ao dispositivo do seu filme mais famosos: "Instinto Fatal" (1992), com Sharon Stone. Mais do que apaziguar a nossa visão através de uma "reposição" da ordem, o seu filme transcende o enigma policial e pergunta que valores sustentam essa ordem.
Huppert é genial na representação de tudo isso e das ambivalências que isso tudo envolve. Por um lado, partilhamos o seu desejo de reparação face à violência de que foi vítima; por outro lado, quanto mais a acção avança mais Michèle nos surge como uma máscara que não sabemos decifrar.
Foi um dos grandes filmes de Cannes/2016, capaz de nos fazer compreender, de modo inesperado e perturbante, a estranheza do nosso tecido social — sempre, convém não esquecer, com um bizarro e contagiante toque de humor.

+ críticas