joao lopes
19 Ago 2016 23:34
Laurent Cantet é um cineasta desconcertante — no melhor sentido, entenda-se. De facto, não parece possível encerrá-lo em qualquer padrão temático, de tal modo a sua obra vai ziguezagueando através das referências mais variadas. Ele é o autor de "A Turma", visão desencantada do dia a dia de uma escola que lhe valeu a Palma de Ouro de Cannes/2008, mas é também, por exemplo, o arqueólogo cultural que, em "Foxfire" (2012), faz um retrato acutilante da década de 1950, nos EUA.
Com "Regresso a Ítaca", Cantet tem como aliado o escritor cubano Leonardo Padura para construir uma ficção em que a linearidade do tempo se combina, de modo inesperado, com os ziguezagues da memória. Mais concretamente, esta é a crónica do reencontro de cinco amigos cubanos, motivado pelo regresso de um deles, depois de um período de 16 anos exilado em Espanha — tudo começa a meio da tarde de um dia para terminar no nascer do sol do dia seguinte.
"Regresso a Ítaca" é um daqueles filmes em que sentimos algo tão intenso quanto enigmático: na enérgica troca de palavras que motiva a recepção ao exilado, vamos detectando os sinais de um passado em que o crescente desencanto político não pode ser dissociado das convulsões das relações pessoais, por vezes as mais íntimas. No limite, é o imaginário da revolução que surge metodicamente decomposto, dando lugar a um profundo desencanto.
Uma vez mais, Cantet revela essa capacidade invulgar de colocar em cena subtis elementos de natureza realista — apetece dizer: quase documentais — sem que isso contrarie, bem pelo contrário, os ecos sociais, políticos e simbólicos das suas narrativas. Neste caso, a rodagem na própria cidade de Havana empresta ao filme uma pulsação muito própria, enraizada na indesmentível verdade física do lugar.