joao lopes
2 Abr 2020 23:01
Estranha e amarga conjuntura — é bem verdade que, em nome da saúde de todos nós, a pandemia nos obriga a um recolhimento tão austero quanto possível; ao mesmo tempo, não é menos verdade que, no domínio cinematográfico, se abrem diversas hipóteses de (re)descoberta de filmes que, além do mais, teriam merecido outra atenção aquando do seu lançamento. Por estes dias, um desses filmes será "Bug" (2006), de William Friedkin [disponível na plataforma FilmIn], uma raridade "quase" inédita.
Friedkin é, há várias décadas, um dos "marginais" mais activos de Hollywood, mesmo não esquecendo que a ele pertencem dois dos maiores sucessos comerciais da década de 70: "Os Incorruptíveis contra a Droga" (1971) e "O Exorcista" (1973). Quase sempre através de mecanismos mais ou menos independentes de produção, ele tem conseguido concretizar projectos como "Bug", uma adaptação da peça homónima de Tracy Letts, aliás com argumento do próprio autor.
O título refere-se aos "insectos" que a personagem central, um veterano da Guerra do Golfo (Michael Shannon), diz estarem a atacar o seu corpo, mesmo se o filme não os "mostra". Através da sua relação com uma mulher (Ashley Judd) em ruptura com o marido (Harry Connick Jr.), somos confrontados com um espaço, físico e psicológico, de crescente claustrofobia — mais do que um estudo "psicológico", estamos perante uma viagem pela fronteira entre real e imaginário.
Apesar de distinguido com o prémio FIPRESCI em Cannes/2006 (Quinzena dos Realizadores), "Bug" nunca mereceu especial atenção dos circuitos de difusão. Trata-se, em boa verdade, de um filme tanto mais atípico quanto se afasta dos retratos tradicionais de memórias da(s) guerra(s). No limite, Friedkin consegue a proeza de revisitar os valores clássicos do heroísmo, questionando a acção do sistema militar sobre a identidade humana — sempre com uma impecável direcção de actores.