joao lopes
18 Jan 2018 0:58
A vaga "social" em torno dos filmes que abordam temas ligados à história dos afro-americanos nos EUA está dominada por efeitos banalmente panfletários. Não que essses temas sejam banais ou indiferentes (bem pelo contrário). Não é essa a questão. Acontece que, sobretudo no contexto da chamada temporada de prémios, há títulos que são promovidos à condição de "emblemas", outros que vão ficam esquecidos porque não cumprem os requisitos dessa condição…
Aí temos o exemplo do belíssimo "Mudbound", entre nós lançado como "As Lamas do Mississipi" — chegou a ser citado como possível candidato a muitas nomeações, agora corre o risco de ser um objecto trucidado pelo automatismo dos mercados… Baseado no romance homónimo de Hillary Jordan, a sua história de dois soldados, um branco (Garrett Hedlund), outro negro (Jason Mitchell), regressados dos combates da Segunda Guerra Mundial demarca-se de clichés ideológicos e dramáticos para traçar o retrato incisivo, e muito subtil, do racismo no estado do Mississipi, nos tempos finais da década de 1940.
Um dos aspectos mais invulgares de "As Lamas do Mississipi" é a sua capacidade de dar a ver uma conjuntura de marginalização e repressão dos afro-americanos, não através de uma descrição "global", antes explorando os distintos pontos de vista das personagens centrais, incluindo as duas mulheres interpretadas por Carey Mulligan e Mary J. Blige — daí o singular e envolvento espírito coral da narrativa.
A realizadora Dee Rees, também responsável pela adaptação do romance (em colaboração com Virgil Williams), consegue a proeza de revitalizar um modelo de saga histórica em que a percepção das dinâmicas colectivas se afigura tão importante como as diferenças individuais. Estamos, afinal, em linha directa com a grande tradição clássica de Hollywood — pelos vistos, os valores dessa tradição são indiferentes aos que estão a atribuir prémios.