2 Jul 2020 18:17
Curiosa "perversidade" da produção cinematográfica contemporânea: por vezes, os cineastas mais enraizados nas referências culturais do seu país de origem são também os que se sentem mais à vontade para protagonizarem uma "transferência" artística para outras paragens. Acontece agora com o japonês Hirokazu Kore-eda, autor de títulos como "Ninguém Sabe" (2004) ou "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões" (2018), este consagrado com a Palma de Ouro de Cannes, assinando um título genuinamente francês: "A Verdade".
Se dúvidas houvesse sobre a dimensão à la française do filme, bastaria citar os nomes das duas divas — do cinema francês, justamente — que lideram o elenco: Catherine Deneuve e Juliette Binoche, aliás bem acompanhadas pelo americano Ethan Hawke. Em termos simples, digamos que se trata de um rendez-vous: Deneuve e Binoche interpretam mãe e filha que se reencontram (sendo Hawke o marido da filha) para acompanhar o lançamento de uma auto-biografia da mãe — a reunião de família corre o risco de se transformar num ajuste de contas afectivo…
Não será necessário lembrar muitos títulos da filmografia de Kore-eda para ilustrar o peculiar intimismo dos seus retratos familiares — além dos já citados, vale a pena não esquecer, por exemplo, o belíssimo "Andando" (2008), porventura o que mais e melhor ilustra a sua condição de discípulo do mestre Yasujiro Ozu (1903-1963). No caso de "A Verdade" (o título do filme é o título da autobiografia), o que está em jogo confunde-se, afinal, com essa questão paradoxal: no labirinto de verdades que cada um defende, como é que aqueles seres comunicam? Ou será que, em última instância, se desconhecem?
Insolitamente ou não, "A Verdade" será o filme de Kore-eda em que tudo isso se apresenta tratado de forma mais ligeira, ou melhor, mais ambivalente: as nuances do drama familiar (e esta é uma família atravessada por muitas contradições…) coexistem sempre com um humor tão desconcertante quanto contagiante. E é delicioso observar os actores, com obrigatório destaque para a nobreza agreste de Deneuve, a representar esse ziguezague em que lágrimas e riso são apenas duas nuances da mesma máscara.