joao lopes
9 Out 2021 23:36
Eis duas perguntas clássicas que o filme "A Metamorfose dos Pássaros", de Catarina Vasconcelos, nos faz reencontrar e, de alguma maneira, repensar:
1 — como definir a fronteira entre documentário e ficção?
2 — quais as possibilidades de relação (conjugação ou dissonância) entre as imagens e os sons?
Numa primeira resposta, deparamos com o gosto de uma liberdade formal, também ela clássica, mas nem sempre devidamente aproveitada. Aqui, pelo contrário, os resultados são sugestivos e envolventes: este é um filme que parte de um pressuposto documental — construir uma memória da família da própria realizadora — para ir acolhendo as vibrações dramáticas de uma pura ficção.
Depois, somos levados a reconhecer um outro princípio de liberdade formal que, em particular, alguns cineastas das novas vagas dos anos 60 (Godard, Resnais…) aplicaram de modo tão peculiar. A saber: a complementaridade de imagens e sons não resulta obrigatoriamente de qualquer "simultaneidade" informativa. No limite, tal simultaneidade pode resultar da uma calculada estranheza mútua — daí nascem, aliás, os momentos mais genuinamente cinematográficos de "A Metamorfose dos Pássaros", sustentado, em particular, pelo efeito coral das vozes que o habitam.
Como outras experiências da produção portuguesa recente (sobretudo no domínio das curtas-metragens), "A Metamorfose dos Pássaros" é um objecto que corre o risco de ser parasitado por um maneirismo que, em última instância, mesmo involuntariamente, ameaça desvalorizar personagens e situações. Felizmente, esse risco vai sendo superado por um risco maior: tratar a pura intimidade como cenário de um teorema de palavras e silêncios, emoções e afectos.