Um filme para ver (e ouvir) John McEnroe — para além do seu próprio estereótipo


joao lopes
7 Mar 2019 17:21

É assim o mundo em que vivemos: na semana em que o lançamento de "Capitão Marvel" ocupa todas as frentes mediáticas, surge nas salas portuguesas "John McEnroe: O Domínio da Perfeição", discreta e fascinante obra-prima do cinema documental. Não se trata, repare-se, de definir um destes dois filmes "contra" o outro — a defesa da pluralidade cinematográfica é isso mesmo, quer dizer, não demoniza nenhum título, género ou tendência. Acontece apenas que conhecemos mal a própria pluralidade a que temos acesso…

O trabalho do realizador francês Julien Faraut é tanto mais interessante quanto estamos perante um documentário de documentário(s). Assim, ele parte de imagens e sons registados por Gil de Kermadec, ex-Diretor Técnico Nacional de Ténis, em França, que na década de 70 realizou uma série de filmes de instrução visando o conhecimento das regras daquele desporto; a certa altura, considerando que era importante abordar as singularidades do próprio jogo, decidiu filmar os melhores do mundo a competir em Roland-Garros — John McEnroe tornou-se figura central do seu trabalho, desembocando no registo da épica final de 1984 em que o americano enfrentou o checoslovaco Ivan Lendl.


O resultado nada tem a ver com qualquer banal acumulação/antologia dos materiais filmados nos anos 70/80. Com a cumplicidade do próprio de Kermadec, Faraut revisita tais materiais (acrescentando muitos fragmentos que ficaram por utilizar), propondo uma brilhante re-montagem. Em última instância, aquilo que está em jogo é a revelação de uma verdade, de uma só vez desportiva e anímica, técnica e filosófica, em que o ténis surge como sofisticado trabalho de revelação. O filme organiza-se mesmo a partir de um axioma enunciado por Jean-Luc Godard: "O cinema mente. O desporto não."

Raras vezes vimos tão subtil amostragem/reflexão do modo como os materiais fílmicos (neste caso, com o belíssimo grão da película de 16 mm usada por de Kermadec) transcrevem e, de alguma maneira, recriam a realidade, expondo as suas fronteiras, contrastes e contradições. Se outros méritos não tivesse, o filme de Faraut supera a imagem estereotipada de McEnroe como um provocador de conflitos, celebrando antes a sua complexidade humana, porventura demasiado humana.

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