crítica
Uma visão desencantada da Rússia
Não acontece com muitas frequência mas, de vez em quando, vamos podendo descobrir os sinais do melhor cinema da Rússia: premiado em Cannes, aí está o magnífico "Leviatã", assinado por Andrey Zvyagintsev.

joao lopes
5 Mar 2015 0:24
Não são muitos os títulos da produção russa que chegam ao mercado cinematográfico português. É pena, e não só porque a Rússia possui uma riquíssima e fascinante tradição cinematográfica — também porque por aquilo que vamos podendo descobrir em alguns festivais de cinema, é óbvio que essa tradição ecoa no trabalho dos mais diversos autores contemporâneos.
"Leviatã" é, justamente, um filme que começou por ser consagrado num festival: arrebatou, em Cannes/2014, o prémio de argumento. Partilharam-no Oleg Negin e o realizador Andrey Zvyagintsev, responsáveis por uma história que coloca em cena a vida agitada de uma pequena cidade portuária do mar de Barents, no noroeste da Rússia.
A partir dos problemas de Kolya (Alexei Serebryakov) — encurralado por um munícipe corrupto que se quer apropriar do terreno em que está a sua casa, ao mesmo tempo que tem de enfrentar uma complexa crise conjugal —, somos confrontados com uma teia de acontecimentos em que tudo parece ameaçado por um processo de desagregação humana e moral.
E é, realmente, espantoso o modo como Zvyagintsev reúne elementos capazes de nos dar uma perspectiva crítica da vida daquela cidade, sem nunca deixar de prestar atenção às nuances dos comportamentos humanos — estamos mesmo perante um caso exemplar de equilíbrio dialéctico entre o individual e o colectivo.
Tal como em "O Regresso" (2003) ou "Elena" (2011), Zvyagintsev combina elementos marcados por primitivas ressonâncias simbólicas (a história bíblica de Job foi mesmo uma das inspirações para a elaboração do retrato de Kolya) com uma visão muito directa, metodicamente realista, da vida social e, em particular, do espaço familiar. Dito de outro modo: "Leviatã" propõe uma visão desencantada da Rússia da actualidade, através de um cinema de grande riqueza dramática e narrativa.
+ críticas
Muito barulho para quase nada…
joao lopes
07 Fev 2023
A “fotogenia” da pobreza
joao lopes
1 Nov 2014
Revisitando uma riquíssima tradição musical
joao lopes
19 Abr 2014
Cinema
Sob o signo de Hollywood
joao lopes
07 Abr 2022
François Ozon, ou a arte de um humanista
joao lopes
31 Dez 2021
A arte de (não) contar histórias
joao lopes
25 Dez 2021