24 Ago 2018 0:39
Não tenhamos ilusões: hoje em dia, "O Testamento de Orfeu" (1960) pode estar condenado a uma bizarra marginalidade de filme maldito. Perante um público (des)educado a associar o poder transfigurador do cinema aos efeitos especiais de super-heróis e afins, o artifício visceralmente poético do trabalho de Jean Cocteau (1889-1963) corre o risco de ser rejeitado de forma brusca, automática, sem direito à sua diferença.
De acordo com outro ponto de vista (… mas não será o mesmo?), "O Testamento de Orfeu" é mais um dos grandes acontecimentos deste Verão de reposições, permitindo-nos aceder a um singularíssimo universo em que o gosto especulativo do cinema nunca foi estranho à vontade de definir uma espécie de auto-biografia delirada, paradoxalmente próxima das convulsões da existência — como sublinhava o trailer original de "O Testamento de Orfeu", este era um filme em que ecoavam os títulos anteriores de Cocteau, incluindo os lendários "A Bela e o Monstro" (1946) e "Orfeu" (1950).
Dir-se-ia que Cocteau, encenado com os seus olhos artificiais, sentiu a necessidade de reassumir a personagem do "Poeta" para elaborar uma espécie de crónica de vida e morte. O impulso auto-biográfico apresenta-se, assim, como um método de reescrita & reencenação dos temas e obsessões de uma obra consagrada às máscaras da existência — em Cocteau, literal ou simbolicamente, tudo é espelho e jogo de espelhos.