joao lopes
31 Out 2019 22:39

Com o filme "Vitalina Varela", Pedro Costa arrebatou o prémio máximo de uma dos mais importantes certames de cinema da Europa, o Festival de Locarno, evento que, de alguma maneira, faz a ponte entre a grande produção industrial e os circuitos mais ou menos independentes. Lembrar esse feito não é exibi-lo como caução para o que quer que seja — trata-se apenas de sublinhar que as singularidades de tão extraordinário objecto de cinema não são "regionais", antes contêm um apelo eminentemente universal.

A história de Vitalina Varela, personagem e actriz (também premiada em Locarno) pode, em boa verdade, definir-se como uma saga de sobrevivência. Ao chegar a Portugal, três dias depois do funeral do marido, esta mulher caboverdiana enfrenta, afinal, a própria crueldade do tempo: esperou 25 anos para poder ter a passagem de avião para a Europa e, ao chegar, dir-se-ia que todo o passado se abate sobre o seu frágil universo, questionando a insensatez do presente.


De "Ossos" (1997) a "Cavalo Dinheiro" (2014), o cinema de Pedro Costa — e, em particular, os seus filmes com elementos da comunidade caboverdiana — tem sido muitas vezes descrito como um trabalho de raiz documental. Vale a pena contrariar esse rótulo, mesmo se podemos reconhecer que há nele uma lógica de documento que, além do mais, se distancia do pitoresco mais ou menos paternalista que, não poucas vezes, contamina as descrições televisivas do outro.



Encontramos aqui um paradoxo vivo, eminentemente criativo, raro no cinema contemporâneo, precioso em qualquer contexto cultural dominado pela aceleração mediática. A saber: Pedro Costa integra um obstinado realismo — corpos, lugares, rostos, mãos, paredes, terra, etc. — que não exclui, antes parece convocar, uma crença das possibilidades de transfiguração que as imagens (e os sons) podem atrair e concretizar.

Daí que a aventura existencial de Vitalina Varela nos surja como uma demanda de outra dimensão, não exactamente utópica, mas transcendental. "Vitalina Varela" é mesmo um filme cujos sinais portugueses são tanto mais intensos quanto tudo nele nos projecta para um algures que, tendo qualquer coisa de metafísico, nos devolve à irredutibilidade das nossas raízes.

Consagrada no cinema de Jean-Luc Godard como programa de conhecimento e filosofia, a expressão "aqui e algures" pode ajudar a definir o misto de ousadia e poesia de que se faz "Vitalina Varela" — eis um filme que viaja pelas fronteiras expressivas do próprio cinema, deafiando as nossas ideias feitas sobre o que seja representar o mundo à nossa volta.

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