Nestes tempos de confinamento, "Bem-vindos a Marwen" é uma das grandes descobertas: realizado por Robert Zemeckis, a partir de uma personagem verídica, o filme de 2018 merecia ter passado pelas salas escuras.
Eis uma notícia curiosa e, convenhamos, desconcertante. Eis um filme protagonizado por um popular actor de comédia (também com invulgares qualidades dramáticas) como é Steve Carell. Eis um filme assinado por um dos autores de maior sucesso no plano comercial (nomeadamente, através da trilogia "Regresso ao Futuro") como é Robert Zemeckis. Enfim… eis um filme que permaneceu inédito nas salas: "Bem-vindos a Marwen" (2018).
Foi colocado directamente nas plataformas digitais, mas tal não se ficou a dever à situação de pandemia que estamos a viver. Antes da actual conjuntura motivada pela defesa da saúde pública, prevaleceu um "conceito" compreensível, embora, a meu ver, demasiado esquemático: o falhanço nas salas dos EUA levou à sua ausência das salas de muitos outros países… Em qualquer caso, aí está: "Bem-vindos a Marwen" é uma das melhores e mais fascinantes descobertas destes tempos de confinamento [TVCine].
Marwen é uma povoação fictícia situada na Bélgica, em plena Segunda Guerra Mundial. O seu criador, Mark Hogankamp, concebeu-a — com edifícios e personagens numa escala de 1/6 —, não apenas pelo gosto lúdico de inventar um mundo "alternativo", sobretudo como forma íntima de catarse. Assim, no ano 2000, Hogankamp foi barbaramente agredido num bar, depois de confessar a cinco desconhecidos que gostava de usar elementos do vestuário feminino, em especial sapatos; a agressão deixou-o em coma durante 40 dias, quase sem memórias do seu próprio passado, sendo Marwen uma experiência decisiva na lenta e paciente recuperação dessas memórias.
Zemeckis filma tudo isso como um conto moral com tanto de realista como de fantástico. Servido por incríveis efeitos especiais, sem nada a ver com as monótonas rotinas dos super-heróis (os "bonecos" de Hogankamp possuem uma singular humanidade), "Bem-vindos a Marwen" representa, afinal, um desafio, de uma só vez estético e industrial, aos padrões dominantes de Hollywood — afinal de contas, com filmes "bons" ou "maus", o grande espectáculo não tem de existir dependente dos valores da Marvel.
Isto sem esquecer que "Bem-vindos a Marwen" é também um caso invulgar de aproveitamente dos talentos do respectivo elenco, incluindo Leslie Mann, no papel da vizinha de Hogankamp, a cantora Janelle Monáe e Leslie Zemeckis, mulher do realizador. Steve Carell, em particular, confirma-se como um admirável "bicho" de transfigurações dramáticas — este seu trabalho pode ser colocado a par de "Derradeira Viagem" (2017), de Richard Linklater, outra das suas grandes composições para lá dos domínios específicos da comédia.