Maria Alexandra Lungu filmada por Alice Rohrwacher — a arte de se chamar Gelsomina


joao lopes
27 Mar 2015 17:06

Gelsomina  (Maria Alexandra Lungu) vive a meio caminho entre a imaginação mais delirante e a realidade muito crua de uma existência difícil. Dito de outro modo: com os pais e as suas três irmãs, Gelsomina enfrenta as convulsões de um tempo campestre em que todos os sonhos estão a ser constantemente postos à prova… "O País das Maravilhas", o filme com que Alice Rohrwacher arrebatou o Grande Prémio de Cannes/2014, tem por isso tanto de crueza realista como de apelo poético.

Sem ser um panfleto ideológico, nem mesmo uma mera crónica social, "O País das Maravilhas" é, obviamente, um filme atento ao estado das coisas, aqui e agora — ou melhor, ao aqui e agora de Itália. A pequena comunidade que tem em Gelsomina o seu símbolo mais forte — e nas suas colmeias a principal fonte de rendimento — vive também sob os efeitos mais ou menos dramáticos de uma crise económica que se enreda com uma crise de valores e comportamentos.
Para traçar este retrato familiar, Alice Rohrwacher construiu um universo em que o labor específico dos actores é decisivo — Alba Rohrwacher, sua irmã, interpreta a personagem da mãe. Assim, há neles uma verdade física e anímica que nasce de uma paradoxal exposição: sentimos a elaborada teia de uma história plena de ressonâncias sociais e simbólicas, ao mesmo tempo que tudo parece enraizar-se num estado de absoluta espontaneidade.
No contexto português, não deixa de ser sugestivo que a estreia de "O País das Maravilhas" ocorra em paralelo com o lançamento de um ciclo Rossellini que nos permite redescobrir dez títulos do mestre que começou no neo-realismo. De facto, Rohrwacher é uma herdeira, directa e legítima, desse cinema que nunca abdicou de olhar para as condições de vida dos italianos. Além do mais, e porque a dimensão afectiva destas coisas não é indiferente, convém recordar que Gelsomina é também o nome que Federico Fellini deu à personagem Giulietta Masina em "A Estrada" — foi em 1954.

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