joao lopes
25 Fev 2016 23:29
Para Ethan Coen e Joel Coen, as memórias de Hollywood constituem uma matéria inesgotável de reflexão e reinvenção. Afinal de contas, desde o policial ("História de Gangsters", 1990) até ao western ("Indomável", 2010), eles têm percorrido quase todos os géneros emblemáticos da fábrica de sonhos, revisitando-os de forma mais ou menos literal, mais ou menos sarcástica.
A maravilhosa comédia que é "Salvé, César!" inscreve-se nessa dinâmica, mas com uma variação que não tem nada de indiferente: desta vez, são os próprios bastidores de Hollywood que os irmãos Coen colocam em cena. E com um sentido evocativo — da produção da década de 50 — que nasce de uma relação de amor/ódio: denunciando as crueldades do sistema, mas acabando sempre por celebrar o amor pelo cinema que, em qualquer caso, continua a distinguir muitos dos envolvidos na própria fabricação de filmes.
Curiosamente, trata-se de evocar uma conjuntura próxima da que serve de pano de fundo ao recente "Trumbo", sobre o argumentista Dalton Trumbo e as convulsões do "maccartismo". Também aqui deparamos com um sistema de estúdios abalado pelos dramas ideológicos da Guerra Fria e, ao mesmo tempo, apostado em consolidar modelos de espectáculo que possam fazer frente à concorrência crescente da televisão.
Neste contexto, tudo oscila entre a estrela dos épicos romanos (a cargo de um divertido George Clooney) e as vedetas dos espectáculos musicais (Scarlette Johansson e Channing Tatum), sem esquecer o pequeno produtor independente (John Goodman, genial) que tenta manter a eficácia comercial dos seus títulos mais bizarros, sustentados por orçamentos de grande austeridade…
Acima de tudo, "Salvé, César!" (o título correcto seria, obviamente, "Avé, César!") é um objecto de calculada e sofisticada ambiguidade: por um lado, somos confrontados com os muitos jogos de mentira e traição que o sistema de produção envolve; por outro lado, para além disso, persiste o poder encantatório do cinema enquanto facto da vida, imaginação e utopia — sentir este filme implica ceder por inteiro aos mecanismos desse poder.