joao lopes
23 Jan 2020 1:45
É bem certo que todos os cinéfilos se recordam de "Paths of Glory" (1957), entre nós exibido como "Horizontes de Glória", o prodigioso filme de Stanley Kubrick sobre a Primeira Guerra Mundial. Mas não deixa de ser verdade que a sua memória como símbolo do "filme-de-guerra" está longe de ser abrangente. Por uma razão (temática e histórica) muito simples: de "O Dia Mais Longo" (1962) a "O Resgate do Soldado Ryan" (1998), o essencial desse género cinematográfico tem sido feito com relatos da Segunda Guerra Mundial.
Há, por isso, qualquer coisa de "anacrónico" no facto de, agora, Sam Mendes, arriscar lançar-se num projecto de tão radical ambição como é "1917". De facto, não se trata apenas de evocar um episódio da Primeira Guerra Mundial, mas de o fazer através de um modo narrativo nunca visto neste registo. A saber: encenar a acção em continuidade temporal, como se tudo resultasse de uma única "take".
Acompanhamos, assim, dois elementos do exército britânico — interpretados pelos magníficos George MacKay e Dean-Charles Chapman —, mobilizados para uma missão de risco: devem atravessar uma zona de trincheiras e arame farpado, de modo a avisar um pelotão que corre o risco de cair numa emboscada dos alemães…
O efeito de continuidade tem tanto de surpreendente como de envolvente, lembrando outras experiências extremas com a gestão do tempo e da duração (com inevitável destaque para "A Corda", uma realização de Alfred Hitchcock datada de 1948). Em qualquer caso, importa acrescentar que o seu impacto não decorre de qualquer "novo-riquismo" tecnológico.
Sam Mendes é, acima de tudo, um criador apostado em valorizar a complexidade humana — e as ressonâncias humanistas — de personagens e situações. Dito de outro modo: ao contrário dos modelos dominantes de grande espectáculo (a começar pela maior parte dos títulos com chancela Marvel), ele encara e aplica as vantagens da tecnologia não como um fim em si mesmo, antes como instrumento de intensificação dos factores dramáticos.
Daí que "1917" consiga a proeza de expor, com perturbante contundência, a lógica, ou a falta dela, de um conflito em que o absurdo das situações de confronto pode implicar, como implicou, a perda de muitas vidas humanas (cerca de 22 milhões, segundo os registos disponíveis). Nesta perspectiva, pode dizer-se que Sam Mendes soube construir, com invulgar detalhe, uma narrativa em que a perspectiva global dos acontecimentos não exclui, antes pelo contrário, a percepção dos mais singulares dramas individuais.
Vale a pena recordar que esta capacidade de dar conta das dimensões mais dantescas da guerra já tinha sido revelada por Sam Mendes num filme brilhante (e muito esquecido) sobre a Guerra do Golfo de 2003 — "Jarhead/Máquina Zero"(2005).