joao lopes
21 Fev 2020 2:03
A sequência de abertura de "Os Miseráveis", de Ladj Ly, é especialmente impressionante — e perturbante. Isto porque a sua lógica de comunhão vai ser metodicamente posta em causa pelas cenas seguintes. Tudo se passa no dia 15 de Julho, em Paris, nos Campos Elíseos: a multidão celebra o triunfo da selecção francesa no Mundial de Futebol da Rússia (4-2, contra a Croácia).
Com o desenvolvimento do filme, rapidamente percebemos os limites da própria ideia de comunhão. O filme segue a actividade de uma brigada policial em Montfermeil, subúrbios de Paris, expondo as convulsões de um tecido social em que a noção de "lei & ordem" está a ser sistematicamente posta à prova, de acordo com uma (falta de) lógica que parece não conseguir resolver uma questão básica: que significa pertencer a um grupo? Ou ainda. como pertencer a um grupo sem abrir conflito(s) com outro(s)?
Ladj Ly filma, assim, os seus próprios cenários de vida. Nascido no Mali, foi muito cedo para França, com os pais, para viver, precisamente, em Montfermeil. Isso ajudará a explicar a pulsão documental que marca o seu filme: por um lado, há nele um espírito narrativo que decorre da tradição do policial francês; por outro lado, tudo se passa como se descobríssemos as personagens "em trânsito", quase como numa reportagem.
Apropriando-se do título do clássico de Victor Hugo e, de alguma maneira, actualizando-o, "Os Miseráveis" foi uma das boas surpresas de Cannes/2019, tendo sido distinguido com o Prémio do Júri. Há nele, afinal, as marcas de uma exigência realista, hoje em dia transversal a algum do melhor cinema (europeu ou não). Trata-se, afinal, de trabalhar as formas cinematográficas contra as rotinas do naturalismo televisivo.