joao lopes
12 Dez 2021 13:01
Qualquer sinopse de "Não Olhem para Cima", de Adam McKay, não pode deixar de fazer pressentir o tom de comédia do absurdo que vai contaminando todos os seus elementos. Aqui temos, afinal, dois cientistas (Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence) que descobrem um cometa cuja trajectória é inequívoca: daí a seis meses, mais coisa menos coisa, irá embater no nosso querido planeta e destruir todas as formas de vida na Terra…
Que mais? Temos uma presidente dos EUA (Meryl Streep), obviamente pós-#MeToo, que começa a pensar que a prioridade não será a sobrevivência do planeta, antes a estratégia para as próximas eleições intercalares… O seu filho (Jonah Hill), chefe de gabinete da Casa Branca, não poderia estar mais de acordo. Nem sequer falta uma vedeta de televisão (Cate Blanchett), tão fútil quanto manipuladora, disposta a acolher a curiosa tragédia que se anuncia — que viva o Apocalipse! Porque não?
A bizarra sedução em que McKay (também autor do argumento) nos envolve decorre desse ancestral saber, muito "hollywoodiano" — lembramo-nos, claro, do "Dr. Estranhoamor" (1964), de Stanley Kubrick, ironicamente rodado nos arredores de Londres —, que consiste em contrapor os mais extremados elementos dramáticos.
Assim, por um lado, "Não Olhem para Cima" possui todas as características de uma farsa surreal alicerçada em calculadas, e muito discretas, sugestões de ficção científica. Ao mesmo tempo, por outro lado, a questão da verdade — entenda-se: a produção da verdade — vai adquirindo um tom de desconcertante realismo que evoca, ponto por ponto, muitas convulsões político-mediáticas do nosso aqui e agora.
Dir-se-ia que McKay prolonga o sentido crítico do seu filme anterior, "Vice" (2018), sobre o poder efectivo de Dick Cheney durante a presidêndia de George W. Bush. Agora, trata-se de encenar o espaço público através de um registo em que ligeireza irónica e gravidade trágica se tocam e confundem.
Para lá da excelência do elenco (sem esquecer Mark Rylance, no papel de um guru das comunicações virtuais que está longe de ser historicamente neutro), sublinhe-se a curiosa duplicidade comercial de "Não Olhem para Cima": estreado nas salas a 8 de dezembro, estará na Netflix a partir do dia 24 — as notícias sobre o apocalipse cinematográfico parecem francamente exageradas…