O ano cinematográfico encerra marcado pelo carácter excepcional de "Licorice Pizza", o novo filme de Paul Thomas Anderson: o seu fulgor corresponde à metódica reinvenção de um riquíssimo património clássico.
A “crítica” não existe. Quero eu dizer: pode haver duas abordagens igualmente entusiastas (ou negativas) de um determinado filme, mas isso não significa que essas abordagens digam a “mesma” coisa — podem até ser profundamente contraditórias.
A “crítica” não existe. Existem críticos, no plural. Ou ainda (e é essa a dimensão essencial): existem espectadores, cada um com a sua irredutibilidade de olhar, pensamento e sensibilidade.
Dito isto, por vezes há fenómenos de sugestiva confluência e conjugação. Creio que o novo filme do americano Paul Thomas Anderson, “Licorice Pizza”, é um desses fenómenos. Creio mesmo que todos podemos observar que se trata de um objecto capaz de gerar um acontecimento transversal de reconhecimento, admiração e até celebração.
Porquê? Não haverá “uma” resposta única, muito menos definitiva. Ainda assim, arrisco dizer que o seu poder de encanto não será estranho ao modo como se demarca do modelo corrente do “filme-juvenil”, nisso envolvendo uma reinterpretação das formas de representação da própria juventude. Aliás, corrijo (mais uma vez tentando contrariar generalizações fáceis): de uma determinada juventude.
Estamos em 1973. Alana tem 25 anos e trabalha como assistente de fotografia. Um belo dia, num liceu onde estão a ser fotografados os alunos (para o seu livro de curso), Gary, dez anos mais novo, começa a conversar com ela… e convida-a para sair…
A partir daqui, entramos numa vertigem de peripécias que podemos, talvez, resumir através de duas componentes: por um lado, Alana e Gary vão conhecer-se ao longo de um processo em que, implicitamente, descobrem também como se desconhecem; por outro lado, tudo se passa em San Fernando Valley, no sul da Califórnia, em ambientes directa ou indirectamente tocados pelo trabalho, e também pelo imaginário, da indústria de cinema — Hollywood é o emblema.
Paul Thomas Anderson, habitante de San Fernando Valley, onde rodou vários dos seus filmes (incluindo o prodigioso “Magnolia”, 1999), relança, assim, uma tradição narrativa em que personagens e cenários surgem sempre envolvidos num jogo de factos e afectos que, em última instância, define uma cultura específica das relações humanas.
Graças a “Licorice Pizza”, reencontramos o fulgor emocional, indissociável do rigor formal, de um cinema que se interessa, realmente, pelos lugares em que cada ser humano encontra, ou procura encontrar, os sentidos da sua identidade. Nessa dinâmica, a importância do conceito de personagem envolve, necessariamente, a intransigente defesa do trabalho do actor.
Daí uma celebração especial: Alana Haim e Cooper Hoffman, intérpretes, respectivamente, de Alana e Gary, são as maiores e mais comoventes revelações de 2021 — dois estreantes que nos permitem reencontrar a sensibilidade à flor da pele do cinema que Elia Kazan (1909-2003) tão admiravelmente concretizou.
Ela é uma das três irmãs da banda Haim, com vários telediscos dirigidos por Paul Thomas Anderson
[video: "Hallelujah"]
; ele é filho de Philip Seymour Hoffman (actor que integrou os elencos de vários filmes de Paul Thomas Anderson). Estes laços, profissionais e afectivos, são também uma forma de dizer que o cinema persiste, e resiste, através dos seus laços humanos.