29 Jan 2016 19:19
Personalidade marcante da Nova Vaga francesa, Jacques Rivette faleceu a 29 de Janeiro, contava 87 anos — a sua obra, sempre seduzida pelo gosto pelos artifícios do teatro, inclui três dezenas de títulos, o último dos quais, "36 Vistas do Monte Saint-Loup", surgiu em 2009 [trailer].
Tal como os seus companheiros (Godard, Truffaut, Chabrol, etc.), Rivette começou por acumular as funções de crítico e cineasta, desse modo reflectindo uma atitude essencial na Nova Vaga: tratava-se de repensar o cinema, a partir dos clássicos, abrindo as portas para a modernidade.
As suas primeiras longas-metragens — “Paris Nous Appartient” (1961), “A Religiosa” (1966) e “O Amor Louco” (1969) — reflectem, desde logo, a singularidade de um olhar em que os elementos teatrais são essenciais na estruturação da mise en scène, por assim dizer situando a vida num terreno ambíguo em que cinema e teatro disputam os seus artifícios. Não por acaso, o primeiro e terceiro desses títulos são já sobre grupos humanos envolvidos em trabalhos de encenação teatral [video: evocando a rodagem de “Paris Nous Appartient”].
É bem verdade que a delicada temática de “A Religiosa”, filme adaptado da obra de Diderot sobre uma jovem forçada a entrar num convento, no séc. XVIII, deram a Rivette uma visibilidade especial (aliás, na altura, acompanhada por um aceso debate sobre a liberdade de expressão na sociedade francesa). Em todo o caso, o seu cinema foi-se consolidando numa dimensão cada vez mais experimental, sempre seduzida pela verdade ontológica, e também pelas máscaras, do teatro.
“Out 1: Noli me Tangere” (1971), prodigiosa deambulação pelas desilusões e fantasmas do pós-Maio 68, “Céline et Julie Vont en Bateau” (1974), uma espécie de melodrama bizarro tratado como um policial onírico, ou “Hurlevent” (1985), originalíssima adaptação de Emily Brontë (“O Monte dos Vendavais”), são referências marcantes de uma filmografia que se foi distanciando dos padrões correntes da indústria, mesmo se manteve uma relação aberta com alguns dos nomes mais conhecidos do cinema francês. “A Bela Impertinente” (1991) pode servir de exemplo modelar, encenando a relação agridoce de um pintor e o seu modelo, interpretados, respectivamente, por Michel Piccoli e Emmanuelle Béart [trailer].
Mesmo quando abordou temas com uma carga histórica precisa — será o caso desse extraordinário díptico, protagonizado por Sandrine Bonnaire, que é “Joana d’Arc, a Donzela” (1994) —, Rivette manteve-se um criador apostado em testar os limites da própria representação. Daí que o trabalho com os seus actores fosse um processo de genuína colaboração e mútua descoberta.
Não poucas vezes, esse trabalho desembocou nos territórios instáveis e envolventes da ironia e da comédia. No fundo, a teatralidade da vida — que, no seu universo, se confunde com uma certa teatralidade do cinema — apela a uma permanente e risonha desconstrução. Exemplos notáveis do riso segundo Rivette poderão ser “Alto Baixo Frágil” (1995) ou “Sabe-se Lá” (2001), este integrando de modo espectacular esse brilhante actor italiano que é Sergio Castellitto [trailer americano].
Já há alguns anos afastado da cena pública, Rivette encerrou a sua filmografia com “História de Marie e Julien” (2003) e “Não Toquem no Machado” (2007), antes do já citado “36 Vistas do Monte Saint-Loup” — até final foi um criador algo marginal, mas sempre no centro das grandes convulsões formais do cinema moderno. Em boa verdade, a invenção da modernidade cinematográfica passou, de forma decisiva, pelos seus filmes.