15 Mai 2020 23:26
Um dos aspectos mais paradoxais da nossa situação de espectadores em tempo de confinamento é a abundância das escolhas. Mais exactamente: o facto de haver um número "infinito" de títulos à nossa disposição não significa que os encontremos de alguma maneira organizados, porventura hierarquizados. Ou ainda: corremos o risco de passar ao lado de muitos clássicos, sem dar por eles…
Daí que valha a pena chamar a atenção do leitor/espectador interessado para aquele que se tornou um dos filmes menos vistos, porque menos divulgados, de Orson Welles: "O Estrangeiro" [Netflix]. Sem esquecer, claro, que na mesma plataforma podemos encontrar o filme "póstumo" de Welles, "O Outro Lado do Vento", um dos acontecimentos fulcrais do ano cinematográfico de 2018.
Produzido em 1946, "O Estrangeiro" surgiu depois de "O Mundo a Seus Pés" (1941) e "O Quarto Mandamento" (1942), numa altura em que a posição de Welles na máquina de Hollywood começava a perder força, em especial devido aos muitos problemas que envolveram a rodagem, no Brasil, do documentário "It’s All True" (1943).
Para Welles, criador para lá de todas as normas, esta foi a oportunidade de, ironicamente, realizar um filme "normal", cumprindo o calendário de rodagem e obtendo algum sucesso comercial. Assim aconteceu (mesmo se isso não resolveu os seus conflitos com o sistema de estúdios), sendo "O Estrangeiro" um produto típico do cinema do imediato pós-guerra, aliás integrando algumas imagens documentais do horror dos campos de concentração nazis.
Como muitos títulos de "série B" da época, directamente ou não ligados à temática da guerra, "O Estrangeiro" organiza-se a partir de uma estrutura policial: Mr. Wilson (Edward G. Robinson) é um investigador ao serviço das Nações Unidas que tenta localizar Kindler (Welles), um criminoso nazi que vive numa pequena cidade dos EUA, com uma identidade falsa, sem que a própria mulher (Loretta Young) tenha qualquer suspeita em relação ao seu passado…
Mesmo seguindo uma matriz narrativa "tradicional", Welles transforma "O Estrangeiro" numa original e perturbante viagem através do labirinto do Mal, pontuando o filme com marcas eloquentes do seu sentido inovador da linguagem cinematográfica. Para lá de alguns notáveis planos-sequência, o filme organiza-se como um crescendo trágico que desemboca na célebre sequência final no campanário da igreja, com Welles, Young e Robinson. Sem esquecer, claro, que além do seu talento de representação, Welles foi também um notável director de actores.