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05 Jun 2025

“Portugueses” é o novo filme de Vicente Alves do Ó, um musical com meia centena de atores e atrizes interpretando treze canções de luta e resistência com direcção musical de Lúcia Moniz.

Os portugueses somos nós?

Sim, os portugueses somos nós, aquelas cinquenta personagens. Dentro de cada um de nós existe um bocadinho daquelas cinquenta pessoas que, ao longo de duas horas de filme, contam um pouco da sua vida, dos seus conflitos e dificuldades, das suas sombras, mas também da sua força, da sua esperança e da sua música.

Do ponto de vista da escrita o que motiva o filme? Os cinquenta anos de democracia, filme coincide com esse momento que aconteceu no ano passado, ou é a realidade política atual que cada vez mais justifica este filme?

Quando comecei a trabalhar o filme em 2021, durante a pandemia, tinha ao longe a ideia das comemorações dos cinquenta anos do 25 de abril, mas numa outra perspectiva que era aquela velha frase que nós ouvimos muito, ‘abril que não se cumpriu’, o que falta fazer, o que ficou por fazer, que democracia é esta que não amadureceu? Que democracia é esta que, de repente, se vê abraços com um discurso extremado que começa a ter muitos ouvintes?

O filme começa por aí, depois foi evoluindo no sentido de também trazer os cantautores. Quando falamos no 25 de abril falamos na questão política, nos capitães de abril, mas falamos pouco nos nos cantores de intervenção.

Mais tarde, quando já estamos a filmar, alguém me diz, ‘olha Vicente acho que é um desperdício estreá-lo no 25 de abril, porque o filme vai ficar fechado num conceito de comemoração e tu estás aqui a falar de coisas que ultrapassam o 25 de abril e falam muito sobre o Portugal dos dias de hoje, que existia em 74 e não mudou absolutamente nada.

Portanto, quando a Cinemundo e a Ukbar me perguntaram, se ‘em vez de estrearmos no 25 de abril, onde já há tanta coisa, não queres aproximar-te mais do dia de Portugal? Porque a tua intenção é falar nos portugueses e, essa forma, como disseste, parece quase uma ordem, não é? É uma coisa da minha infância, porque o General Ramalho Eanes, quando ia à televisão, dizia isso exatamente assim, ‘portugueses’, e depois é que começava o discurso. O ‘portugueses’ é uma forma de chamar a atenção.

O que falta para cumprir o 25 de abril?

Durante estes 50 anos conseguimos imensa coisa, modernizámos o país, mas fizemos uma coisa que agora se está a perceber que não foi acompanhada de outra. Construímos uma sociedade de fora para dentro, achando que é dando coisas às pessoas, que vamos fazer delas melhores seres humanos e melhores cidadãos, e percebemos que não.

Aliás, não só nós, a Europa, os Estados Unidos, o mundo ocidental, percebeu que não é dando conforto às populações, a um limite quase estratosférico que podes criar um melhor cidadão, um melhor ser humano.

Isso está a revelar-se agora porque, à mínima contrariedade, a reação das pessoas não é de solidariedade, de compreensão, de empatia, mas de indignação, de revolta e de adoção de uma série de coisas que acho que já deviam estar ultrapassadas e com que nenhuma sociedade deveria voltar a compactuar.

Portanto, nestes 50 anos, investimos imenso em betão, em autoestradas, em hospitais, em escolas, tudo certo, eram coisas que faziam falta, mas quando estas coisas foram conseguidas deviam ter sido acompanhadas de outra coisa que é estruturar aquilo que os portugueses são por dentro, de forma não só intelectual, cultural, educacional, empática – sei que estou a dizer agora uma série de chavões, mas a verdade é que somos o país que menos consome cinema, que menos consome teatro, que menos lê…

Temos uma escolaridade feita de escolas que competem num ranking nacional que é uma coisa que eu não consigo compreender, nada que esteja ligado àquilo que o ser humano deve ser no seu máximo, deve ser alguma vez quantificado, deve ser qualificado e nunca quantificado.

Eu próprio vou aos concursos do Instituto do Cinema e sou classificado com números e eu e os meus alunos andamos continuamente a ser números e isto trouxe-nos até aqui, onde não temos a percepção do que somos.

O que aconteceu foi que percebes rapidamente que estes movimentos de extrema direita e de extrema esquerda, não estão alicerçados numa ideologia, mas numa sociedade de consumo que substituiu todas as ideologias.

Por isso há esta viragem de repente à direita e à extrema direita porque as pessoas não querem ouvir, não querem admitir a ideia de que são uma coisa.

É uma palavra que o PCP continua a usar e faz bem que use, mas as pessoas têm horror, não se pode dizer que és um trabalhador, no máximo és um colaborador ou um empresário.

Não é nada saudável uma sociedade que de repente chegue ao século XXI com tantos avanços científicos e civilizacionais e esteja a criar gerações de anémonas, abéculas, que vivem ao redor das redes sociais que de repente tomaram conta das nossas vidas e onde estamos a embrutecer.

“Portugueses” é um filme com 50 atores e atrizes, interpretando 13 temas. e é um filme sobre a democracia que procura também refletir aquilo que somos, através desta história coral e com uma linha temporal muito ampla. Apetece perguntar, perante aquilo que dizes, se há mais esperança no cinema, ou no país?

Neste momento, acho que não há esperança em nenhum dos sítios. Acho que não há no país, porque estamos todos, pelo menos as pessoas com quem vou falando, estamos um bocadinho com medo. Foi uma surpresa muito grande o que aconteceu agora com o Chega e acho que estamos um na expectativa de perceber o que é pode acontecer nos próximos dois anos.

Em relação ao cinema, há pouco tempo dei uma entrevista, falei de coisas tão engraçadas e a frase logo que decidiram destacar foi aquela. Comecei logo a receber mensagens horríveis de pessoas a chamarem-me tudo e mais alguma coisa quando disse que achava que o cinema português estava a morrer.

Há uma explicação para dizer isto, uma explicação muito prática. Ao contrário das pessoas que me ofenderam, todas as segundas e quintas-feiras vou ver os resultados em sala.

É a eterna questão de que o cinema só pode ser uma coisa e não pode ser várias e, portanto, nós privilegiamos sempre a produção cinematográfica de arte em ansaio, a qualquer coisa que seja um bocadinho mais emocional, abrangente, ou de grande público, retratando isso como fosse uma coisa menor, que é uma coisa que não consigo imaginar.

A primeira que me dizer que o “Serenata à Chuva” ou o “ET” é uma coisa menor, eu vou pegar num DVD, vou-lhe dar com ele na cabeça e vou preso. Não admito isso, o cinema não pode estar fechado nessa gaiola dourada de que só pode ser uma coisa.

Temos tanto orgulho no cinema de que fazemos, mas a grande verdade é que o público não tem uma relação emocional com o nosso cinema. Às vezes aparece uma andorinha que faz 100 mil espectadores, as pessoas vão ver e aparecem sempre aqueles artigos a dizer, ‘é a primavera do cinema português, é agora que isto vai’. Não vai nada, são pequenos fenómenos e lá está o ditado, ‘uma andorinha não faz a primavera’. Tem de ser uma coisa mais constante e leva anos a construir e, nos últimos 15 anos, ao contrário do que as pessoas dizem e pensam, ou esperavam, os números estão cada vez piores, cada vez mais baixos e isso assusta-me muito.

Vamos ver que público encontras com um musical que é um género estimado, popular também, mas que encerra as suas dificuldades. Qual é o teu fascínio pelo musical, voltando ao filme?

Para que as pessoas tenham mais noção antes de entrar na sala, não é um musical à Broadway, enm um musical tipo “Mamma Mia!” ou “Chicago”, em que toda a gente dança e canta a toda hora, não é isso que vão ver, de todo. É uma coisa até, passe o pretenciosismo, muito mais francesa, um bocadinho mais Christophe Honoré, se quisermos, muito mais Jacques Demy, em que as pessoas cantam dentro das suas próprias vidas e na sua intimidade, e é assim que eu queria que as canções surgissem, como desabafos pessoais daquelas personagens em determinado momento, tirando um momento ao outro em que as canções são usadas mesmo como arma, na homenagem que faço aos católicos progressistas na Capela do Rato, na homenagem que faço aos lavradores e agricultores de jorna, que ocupam uma herdade no Alentejo e cantam o hino da reforma agrária. O conceito de musical está lá para servir a história e não é a história que está lá para servir o musical, ou para servir as canções, isso para mim era muito importante e era importante que passasse.

E é assim que funciona, mas, no fundo, valorizando esta ideia de que a cantiga é uma arma. Ainda é uma arma?

Temos um exemplo agora, muito claro, nos últimos anos apareceu A Garota Não, que de repente veio cantar umas coisas e eu acho que a Garota Anão ao trazer novamente uma espécie de canção de intervenção, onde as letras e os poemas estão a falar diretamente da vida das pessoas, ganhou tanto eco, exatamente porque pouca gente andava a fazer .

Portanto, acho que a canção deve ser, pode ser uma arma de intervenção porque ela é um objeto acima de tudo emocional. O cinema também pode ser uma arma de intervenção, mas tem que tocar do ponto de vista emocional no espectador que está no cinema e, muitas vezes, as pessoas vão ao cinema e não se veem ao espelho, não se reveem no ecrã.

Eu acho que este é um filme de intervenção, acho que o cinema é uma arma de intervenção, acho que precisamos de fazer mais cinema de intervenção no sentido em que ele fala diretamente às pessoas e conta histórias difíceis, mas são difíceis não porque a vida das personagens é difícil, mas porque nos mostram exatamente como a nossa vida está montada para ser difícil e, dito isto, muitas vezes não é mostrar a vida dos mais pobres, mas é exatamente ocupando o espaço dos mais ricos, que raramente estão no cinema português, nós nesse aspecto temos uma preocupação muito social, mas muito pouco política.

Eu sei que todos temos medo de perder os apoios do ICA e de criarmos inimizades e que cortem as relações connosco no cinema e deixem de nos apoiar. Na classe artística portuguesa nunca houve o 25 de Abril. Há umas pessoas privilegiadas que podem dizer tudo o que querem, que estarão sempre protegidas por uma espécie de corte. É como diz aquela frase muito boa do título de um livro da Rita Ferro de que eu gosto muito que é, ‘a menina é filha de quem?’ que é uma das perguntas que mais me fizeram quando cheguei a Lisboa, ‘mas ele é filho de quem?’, como se isso determinasse qual ia ser o meu percurso.

Nós como artistas, com ICA, ou sem ICA, de preferência com ICA, porque gosto de pagar aos profissionais, porque um filme não se faz sozinho. Portanto, nós fazemos um cinema que faça luz sobre a forma como as nossas vidas muitas das vezes são engolidas.

E é por isso que não fazemos cinema sobre políticos, sobre casos de corrupção gravíssimos como o do BES, ainda ninguém no cinema pôs a história toda do Sócrates e este meandro todo, com os tribunais e os recursos, que só um privilegiado consegue fazer isto, um pobre nunca conseguiria ter advogados para inventar tantos recursos e estar tantas vezes na televisão e continuar a dizer que é inocente.

Portanto, o cinema tem de iluminar mais estas histórias. Sei que é difícil, provavelmente vais ao ICA e és chumbado constantemente porque os júris depois não querem assumir a responsabilidade de terem aprovado um projeto desses, mas temos de insistir.

Não basta sair no 25 de Abril com um cravo na mão a dizer que somos todos pela liberdade e somos todos pelos migrantes e somos todos pela democracia. Para lutar pela democracia e para lutar pelos direitos de toda a gente, o cinema tem de falar diretamente ao coração das pessoas que estão na sala de cinema. São essas pessoas que têm de sair da sala desorientadas. Não é com pena da vida das pessoas que viram no filme, normalmente saem com pena dos pobrezinhos, não, elas têm de sair desorientadas com a vida delas. E isso é um filme de intervenção.

“Portugueses, de Vicente Alves do Ó, estreia esta semana nas salas de cinema.

  • tiago alves
  • 05 Jun 2025 16:23

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