joao lopes
30 Jun 2017 0:37
Afinal de contas, nas nossas vidas atribuladas, onde terminam as rotinas do quotidiano e começam as delícias específicas da poesia?… E como definir a barreira que separa uma coisa e outra?…
Pois bem, para Jim Jarmusch, autor de filmes como "Homem Morto" (1995), "Café e Cigarros" (2003) ou "Só os Amantes Sobrevivem" (2013), essa barreira não existe — o seu novo filme, "Paterson", é mesmo um ensaio sobre a poesia no quotidiano.
É certo que a figura central de "Paterson", interpretada por Adam Driver, também escreve poemas — ou melhor, os poemas que lhe são atribuídos enquanto personagem foram escritos por Ron Padgett. Seja como for, não se trata de opor as rotinas monótonas da sua profissão de condutor autocarros às palavras que vai anotando no seu bloco. Na verdade, para Jarmusch, a pulsão poética não precisa de condições excepcionais para se manifestar.
Daí que o filme se vá instalado numa espécie de realismo "descritivo" que, paradoxalmente, atrai uma dimensão imponderável, à beira do surreal. Os próprios nomes parecem transfigurar-se num insólito jogo de espelhos. Exemplo limite dessa ambivalência festiva das palavras está no próprio título do filme: Paterson é o nome da cidadezinha onde tudo acontece, sendo também o nome da personagem de Adam Driver.
A trajectória pré-definida do autocarro, os passeios de Paterson com o cão Marvin ou as experimentações decorativas da mulher de Paterson (Golshifteh Farahani), tudo remete para outras sensações, desconcertantes e misteriosas — como se a vida corrente contivesse as marcas de um mundo alternativo. Jarmusch é, afinal, alguém que só acredita nas aparências do real. Ou melhor, para ele, nenhuma aparência é banal ou indiferente: nas dobras do quotidiano, a epopeia está sempre à espreita.