7 Out 2021 23:37
Em Cannes, onde ganhou a Palma de Ouro com “Titane”, Julia Ducournau falou da sua profunda admiração por David Cronenberg e, em particular, pelo seu “Crash”, filme que, também em Cannes, em 1996, ganhou um Prémio Especial do Júri (com o voto contra do respectivo presidente, Francis Ford Coppola).
A filiação de “Titane” parece mais ou menos óbvia — em ambos os filmes, corpo e metal parecem ser duas entidades ligadas por uma estranha sensualidade —, mas se é verdade que o trabalho de Ducournau não possui as infinitas nuances da visão de Cronenberg, não é menos verdade que não seria razoável reduzir o seu filme a uma “cópia” seja do que for.Que temos, então? Uma personagem central, interpretada com realismo e panache por Agathe Rousselle, que que em criança sofreu um acidente de automóvel de tal modo grave que a obriga a usar uma placa de titânio na cabeça. Quer isto dizer que o seu cérebro “metalizado” é o primeiro índice de uma existência que, na idade adulta, a vai fazer viver como um ser híbrido — dir-se-ia uma derivação tecnológica da sua própria humanidade.
A realização de Ducournau nem sempre resiste ao pecado da ostentação, como se fosse necessário “sublinhar” o assombramento da sua heroína… Mas é um facto que “Titane” consegue levar a água ao seu moinho, evitando os lugares-comuns de um certo cinema de terror (a que, em boa verdade, não pertence), definindo-se num registo de fábula sangrenta (ou metalizada, se o adjectivo for mais sugestivo…) em que tudo vacila — das indentidades sexuais até aos laços familiares.
“Titane” impõe-se, assim, como expressão surreal de um mundo (o nosso, hélas!) em que tudo parece imediato e transparente, ao mesmo tempo que todos parecem poder asfixiar-se numa qualquer dimensão fantasmática. Por isso mesmo, tudo se baralha: os seres humanos e as máquinas, o sexo masculino, o sexo feminino, enfim, tudo aquilo que descrevemos como sexual. Através de uma mise en scène que tem qualquer coisa de gigantesco videoclip, tudo é também apresentado com a desconcertante energia de uma ópera rock — em resumo, uma aventura para o século XXI.
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